Depois de muita indecisão sobre qual o caminho a realizar, a escolha acabou por recair no Caminho do Norte. Para realizar um mínimo de 100 quilómetros que dessem direito à Compostela, o início deveria ser em Baamonde. O objectivo não era propriamente fazer o mínimo dos mínimos, mas o calendário assim o impunha. Depois de alguma preparação e programação, nos dias que antecederam o início desta peregrinação trouxe, como não podia deixar de ser, medos, indecisões e dúvidas de última hora, referentes às etapas a realizar, ao local onde deixar o carro e aos transportes disponíveis para depois o recolher, ao calçado e ao equipamento a levar...enfim, tudo normal :)
Por fim, a programação das etapas ficou com o seguinte perfil:
1 - Baamonde - Miraz = 20 Kms
2 - Miraz - Sobrado dos Monxes = 26 Kms
3 - Sobrado dos Monxes - Arzúa = 21 Kms
4 - Arzúa - O Pedrouzo = 19 Kms
5 - O Pedrouzo - Santiago Compostela = 20 Kms
Sábado, 31 DE Agosto de 2013 - DE VILA NOVA DE GAIA A BAAMONDE (DE CARRO) E DAÍ ATÉ MIRAZ (A PÉ)
A alvorada foi bem cedo. Mas nem por isso começamos a caminhar à hora programada. Há sempre imprevistos que impedem o cumprimento à risca dos planos. Neste caminho, juntaram-se dois vagabundos improváveis: Anabela e Hélder.
Nesta primeira etapa, deveríamos começar a caminhar em Baamonde e terminar em Miraz. Só trocamos a borracha dos pneus do carro pela das solas das botas quando já eram umas 11h30. Tomamos o pequeno-almoço no café A Rotonda, onde aparcamos o coche, e onde um pobre atendia sozinho à mesa, preparava os pedidos e ainda tratava do caixa, o pedido de uns 20 clientes!! O albergue fica mito próximo deste café e por isso fomos até lá tirar a fotografia da praxe. Trocamos de imediato favores com um peregrino espanhol. Ele quitounos una foto, e nós tiramos-lhe uma fotografia a ele. Ele não ficou muito satisfeito e reclamou com a foto que eu lhe tirei. As palavras dele foram "me has ponido gordo" :) - mas eu juro que não distorci a realidade!!!
Os primeiros 30 a 40 minutos de caminho foram bastante aborrecidos. Só calcamos alcatrão e as vistas são para uma linha de combóio. Quando finalmente saímos da estrada e atravessamos a dita linha "para o lado de lá", tudo se alterou.
Nós, todos orgulhosos do nosso magnífico castelhano, ficamos embatucados quando a senhora que nos estava a atender começou a falar connosco em português do Brasil. Claro que a nossa curiosidade obrigou a que perguntássemos como raio apareciam enterradas no meio da Galiza duas (sim, porque entretanto chegou a irmã) brasileiras. Lá nos explicaram que a família é desta região mas que alguns tinham emigrado para o Brasil em busca de novas e melhores oportunidades e que elas tinham nascido e vivido do outro lado do oceano. Conhecem muito de Portugal e em breve pretendem fazer mais uma visita. Terminado o nosso bocadillo, tomamos um café e depois das contas feitas, abalamos para os restantes quilómetros desta etapa.
Passamos a ter a companhia quase constante de 2 jovens espanhóis. Um deles, nem sei porque é que leva mochila. Bastava-lhe ter duas alças e uns elásticos porque levava quase todo o material no exterior: meias, toalha, chinelos, água...em boa verdade não devia ter nada lá dentro :)
Domingo, 1 de Setembro de 2013 - DE MIRAZ A SOBRADO DOS MONXES
Das 6h30 em diante já não houve sossego na camarata. Zips e velcros são práticos e amigos dos peregrinos...quando estes se encontram acordados!! Porque no silêncio da noite, criam mais bordel que um elefante a caminhar dentro de uma cristaleira. Às 7h fomos tomar o pequeno almoço, que neste albergue nos é oferecido. Bem, oferecido é uma maneira de dizer. Em boa verdade pagamos mais 1 euro ontem quando fizemos o check-in. Pão, manteiga, marmelada, café e leite. Pelo preço não se pode pedir muito mais. Nem nós queríamos mais :)
Às 7h50 começamos a caminhar. Na fase inicial do trajecto é muito parecido com a paisagem e envolvente com que terminamos ontem, percorrendo ruas estreitas, onde impera a presença de cocó bovino :) e com casas típicas de agricultores. Depois entramos em traçado de montanha, com subidas e descidas constantes, piso em terra e com muitas pedras e com muita vegetação. Depois de um pedaço de grande introspecção, as línguas, os pensamentos e os sentimentos/lembranças ganharam vida própria e voltamos a ter uma etapa em que a beleza do caminho passou despercebida face ao contacto próximo e à sintonia que mantivemos. De tal forma, que nem demos pelos quilómetros passarem e quando demos por nós, eram 13h30 e estávamos a chegar ao nosso destino. Após cerca de 25 kms, estávamos um bocadinho moídos, mas nem uma paragem fizemos e o nosso estado energético estava elevadíssimo. Estivemos um bocado indecisos entre ficar por aqui ou irmos já até Boimorto, mas o facto de o albergue estar inserido nos claustros de um mosteiro e de o ambiente ser propício a muita meditação, ajudou-nos a tomar a decisão de parar.
Temos conhecido gente interessante e de todos destaco aquele a quem inicialmente apelidamos de "D. Juan do Chile". Não sei porquê, mas este homem é um galanteador nato. E não julguem que me refiro a engatar miúdas. Ele tem a capacidade de lançar "charme humano" sobre todos em geral. Para além de um poliglota talentoso, é extremamente simpático e afável, e fala com toda a gente conseguindo adaptar-se ao estilo de cada um. Chama-se Álvaro. Há também um trio de espanhóis, entre os quais está um niño de 10 anos. Já compartilhamos um compeed com eles e insistiam que amanhã o queriam devolver. Espírito de peregrino. Mas eu acho que não quero. Para além de pouco higiénico já não vai colar! Espírito de parvo :P
Há também uma italiana que está a fazer o caminho sozinha, um grupo de 3 russas, um casal de dinamarqueses, enfim...não falta variedade :)
Fizemos uma visita ao mosteiro e valeu bem a pena. É imponente! Explicaram-nos que em tempos esteve revestido de musgo para que não lhe cobiçassem a beleza. Ainda hoje pertence à ordem religiosa de Cister, que para além de muito rica, é extremamente poderosa. Coisas de religião :P
Fomos ao supermercado do Cláudio comprar tomate e uma empanada, que serão acompanhadas por uma cola e uma coronita. Também compramos fruta e água para amanhã. Fomos preparar a salada para a cozinha do albergue e vamos falando com os restantes companheiros de jornada. Quanto mais os conhecemos, mais nos apercebemos de como são simpáticos e divertidos. Vamos oferecendo coisas e ajuda uns aos outros. Aceitamos uma sopa da nossa vizinha italiana (que por sinal estava deliciosa), emprestei o meu canivete suíço para o nosso amigo chileno, que também tem nacionalidade alemã) poder abrir uma botella de viño rojo...foi um serão muito bem passado.
Fomos depois beber um café ao que se seguiu a tentação do dia. Quando há pouco fui às compras não resisti a comprar um licor de hierbas que se vende em sticks como os do açúcar dos cafés. Ideia brilhante :)
Hasta mañana chicos e chicas ;)
Segunda-feira, 2 de Setembro de 2013 - DE SOBRADO DOS MONXES A...SALCEDA!!!
O dia começou semelhante ao anterior. Depois de arrumarmos as tralhas todas (é incrível a tralha que se consegue meter dentro de uma mochila) tomamos o pequeno-almoço habitual: tostadas e café, na praça logo ao lado do mosteiro. Pouco passava das 8h quando nos metemos ao caminho e o primeiro peregrino que vimos foi o nosso amigo chileno. Seguimos na sua companhia durante um bocado, discutindo sobre religião, economia, a natureza, tudo e nada!! É uma daquelas pessoas que dá gosto conhecer. Hoje está a prever ir até Sta. Irene, ou seja, vai fazer mais Kms que nós, que só vamos até Arzúa. Ficamos a saber que trabalhou no norte da Alemanha durante muitos anos como criativo de publicidade. Mas era um pouco contra a sua natureza porque sendo contra o capitalismo, sentia que acabava por contribuir para o mesmo através do seu trabalho. Então deixou essa vida e comprou um "espaço" num dos sítios do globo que eu mais gostaria de visitar. Adivinhem lá onde? Pois bem. Se responderam Patagónia é porque me conhecem bem e acertaram em cheio :) Claro que troquei contactos com ele e tenciono MESMO ir visitá-lo. Talvez aproveite para na mesma viagem cumprir outro sonho e consiga ir a Machu Picchu...
Terça-feira, 3 de Setembro de 2013 - DE SALCEDA A O PEDROUZO
Hoje preguiçamos um bocado. Só vamos caminhar uns 7 ou 8 kms, por isso podemos dar-nos a esse luxo. Esquecemo-nos de carimbar as credenciais no primeiro café. Talvez pelo facto de não termos parado lá para tomar nada :P!!
Assim, decidimos que iríamos parar no seguinte para esse fim e aproveitaríamos para tomar um café ou um sumo. O tempo continua fantástico. Muito sol, uma brisa que corre suave e uma temperatura que durante a manhã é muito agradável para caminhar, embora se torne excessiva durante a tarde. O trajecto é agradável, passando essencialmente entre vegetação. Há depois um troço em que se caminha paralelamente à estrada nacional e é precisamente aí que começam a aparecer estabelecimentos comerciais. Quando decidimos optar pelo primeiro, estávamos longe de pensar que iríamos lá ficar muito para além do combinado. Mas precisamente sentado nesse café, estava o nosso amigo chileno. Lembram-se de referir que nada é por acaso? Muito provavelmente foi esta a razão. Passamos aqui um dos melhores bocados de partilha que o caminho nos proporcionou até agora. Juntamente com o Álvaro estava um peregrino brasileiro que se encontra a fazer o Caminho Francês.
Depois de 2 dedos de conversa com eles, onde se juntou de forma estranha mas muito divertida o português (de Portugal e do Brasil) e o Castelhano, eis que chegam junto de nós um trio de portugueses de Rebordosa, que são em si mesmos a personificação da boa disposição e do espírito da malta do nuorte carago :)
Com uma alegria e simpatia contagiantes, ao bom espírito de peregrinos lá ficamos todos sem nos conhecermos, mas a falarmos como se de amigos de longa data se tratassem. Chegaram entretanto mais duas portuguesas que eles também conhecem, uma alentejana e outra de Peniche. Por último juntou-se-nos uma coreana que foi a estrela da companhia. Franzina e de aspecto frágil, com sessenta e tal anos, anda a fazer o Caminho Francês sozinha e quando lhe bateram palmas à sua chegada, até com a dança do Gangnam Style nos brindou :) foi fabuloso. Simplesmente único e imperdível. Depois de mais um bom bocado, lá seguimos caminho todos juntos. Mais uma vez entretive-me numa conversa encantadora com o Álvaro sobre a vida, igualdades, injustiças e outros temas interessantes. Tão entretidos estávamos que nem demos pelo tempo passar e em menos de nada chegamos ao albergue. Ele não vai ficar aqui. Diz que quer dormir ao relento. Despedimo-nos com um abraço e a garantir que nos havíamos de voltar a ver. Da minha parte, garanti-lhe que se não fosse em Santiago, seria por certo na Patagónia.
Promessa feita. Mesmo que o volte a ver em Santiago :D
Fomos fazer o check-in no albergue e como não desayunamos, saímos directos para o Che Café para comer uma bela salada. Já estávamos a ficar um bocado fartos de tantos bocadillos. De volta ao albergue tivemos mais um momento fixola, o Álvaro ainda se mantinha por aqui e estava a beber uma caña, acompanhado por um italiano, e a guardar que o calor amainasse. Ficamos sem perceber muito bem se era peregrino ou apenas um vagabundo do mundo. Ali ficamos a conversar sobre guerras, religião, poder, pobreza e sítios interessantes para se visitar. Falamos sobre pesca, espécies em vias de extinção, ganância humana e muito mais. Foi "apenas" mais uma lição de vida e mais um momento agradável. Não posso deixar de referir que este italiano e cidadão do mundo se fazia deslocar de bicicleta. No lugar da habitual garrafa de água, trazia uma de tintol :) Muito bom!!!
Depois de um jantar em que repetimos o menu do almoço, e no qual houve temas de conversa variados, e interessantes, ao recolher ao albergue tivemos uma agradável surpresa, pois um grupo de músicos tradicionais da Galiza estava à porta a tocar músicas baseadas em gaitas de foles e bombos, acompanhadas de puro improviso peregrino, ao dançarem músicas totalmente desconhecidas com movimentos que pouco tinham que ver com o estilo de música, mas que permitiu mais um momento de excelente disposição e de pura magia. Foi de facto um dia mito agradável ;)
Quarta-feira, 4 de Setembro de 2013 - DE O PEDROUZO A SANTIAGO
Ontem terminei o post do blog cedo de mais :(
Pouco depois de nos deitarmos e adormecermos, eis que surgem do nada alguns dos maiores inimigos dos peregrinos. Os chamados "peregrinos de mierda"...
Um grupo enorme de jovens espanhóis que estava a fazer o caminho, sem qualquer respeito pelos demais utilizadores do albergue, estiveram aos berros em cantorias e "vivas los coños" quase até à uma da manhã. Como se isso não bastasse, quando recolheram às camaratas foi um bater de portas, aberturas e fechos de zips e sacas plásticas, capazes de enervar a mais pacata alma à face da crosta terrestre. E o estupor do cenário repetiu-se às 5h da manhã, quando decidiram levantar-se. Sabemos que o desabafo que se segue não é digno de peregrinos, nem sequer de um bom ser humano, mas pqop...Santiago havia de lhes espetar com os bastões nos cornos quando lá chegassem :)
Depois deste desabafo já me sinto melhorzinho :P
Ainda o sol tardaria a surgir quando saímos do café já com o pequeno-almoço no bucho. Ao dirigirmo-nos ao caminho, encontramos uma peregrina espanhola que no escuro estava indecisa sobre por onde seguia o caminho. Andava a fazer o Caminho Francês sozinha e nós dissemos que nos podia acompanhar pois já tínhamos passado por aquele bocado e sabíamos por onde seguia. Ela estava a mancar um pouco e quando começou a ver as setas agradeceu e disse que ia ao ritmo dela, mas como sabíamos que íamos atravessar bosque cerrado ainda no escuro, decidimos seguir junto dela. Durante cerca de 1 hora tivemos que seguir com as lanternas acesas e muito atentos às indicações pois o caminho é feito totalmente no meio de árvores e vegetação. Quando se começou a ver a luz do dia e encontramos o primeiro café, ela agradeceu muito a nossa companhia (acho que ela nunca teria feito aquele bocado sozinha) e ficou por ali para o pequeno-almoço. Lá seguimos a nossa jornada.
Como já vem sendo tradição, paramos para um reforço alimentar no parque de campismo entre a Televisão da Galiza e a RTVE e quando passamos ao Seminário do Monte do Gozo já começamos a arrebitar o nariz pois já cheirava a Santiago...e não era à tarte :P
Adivinhem lá quem foi que encontramos mesmo à entrada da cidade? O nosso amigo Álvaro :D
Acho que sempre dormiu ao relento e acordou com uns turistas italianos a achar que ele era a encarnação do próprio Santiago :P
Percorremos juntos os poucos metros que nos separavam da antiga porta da muralha e disfarçadamente ele deixou-se ficar para trás ao chegarmos à praça do Obradoiro. De maneira que este foi um momento muito especial e de grande emoção. Já cheguei a Santiago com muitos estados de espírito diferentes, mas chegar com esta companhia depois de um caminho tão agradável era algo por que ansiava e foi um momento magnífico.
Quando fomos recolher a Compostela voltamos a encontrar o Álvaro e fomos todos convidados para entrar num documentário. Infelizmente não pudemos aceitar porque era condição de exigência que estivéssemos na missa desse dia e do seguinte. Nesse dia poderíamos estar, mas limitações de calendário impediam-nos de estar presentes no dia seguinte. Ao separarmo-nos, ele já na companhia da assistente de realização, voltamos a despedirmo-nos e a prometer que nos haveríamos de voltar a ver. Ao que ele respondeu: quanto mais não seja, no ecrã :D
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